O progresso da crise
O choque a que estamos assistindo no Brasil hoje é um conflito de ódios selvagens que mal merece ser chamado de crise política
Há certos assuntos dos quais, mesmo sem entusiasmo, não dá para fugir.
Eles estão de tal modo no cotidiano da sociedade, que é inútil tentar
evitá-los. Assim, vou meter minha colher na crise por que passa o Brasil.
Numa democracia madura, o vitorioso nas eleições deve estender a mão aos
vencidos. Não como uma rendição despropositada, mas numa perspectiva de
construção do país. E cabe aos derrotados respeitar os vitoriosos, dar-lhes um
tempo de tolerância para entender o que de fato pretendem.
Nas nossas eleições de 2014, nada disso ocorreu. Os vencedores exibiram
sua arrogância triunfalista; os perdedores fizeram do rancor uma arma contra o
resultado das urnas. Tinha que acabar havendo o choque a que estamos
assistindo, um conflito de ódios selvagens que mal merece ser chamado de crise
política.
A crise faz parte da natureza humana, ela é o motor do movimento. Sem
ela, não há futuro. Tentar evitar a crise sistematicamente e a todo custo é um
mal disfarçado projeto conservador. A espécie humana escolheu viver dinamicamente,
em busca permanente de mudança e progresso. A crise nasce desse desejo, cada
vez que superamos uma delas encontramos mais outra diante de nós. Temos que
aprender a conviver com a crise.
Com Itamar, Fernando Henrique e Lula, vivemos uma era de ouro da nossa
história republicana. Não só na consolidação da democracia e na estabilidade
econômica, como também no take off social, na
partida em direção a uma sociedade em que ninguém mais está condenado a ser o
que sempre foi.
Ao longo dos mandatos dos três (nunca entendi por que não pertenciam ao
mesmo partido), foram sendo estabelecidas sucessivamente as bases para uma
revolução inédita no país — a revolução da mobilidade social, negação do velho
patriarcalismo oligarca em que sempre vivemos, um regime de poucos escolhidos e
iluminados, os únicos que sabem o que é bom ou ruim para o Brasil. A mobilidade
social deu um novo sentido à vida do brasileiro.
O sonho começou a se desfazer no primeiro mandato de Dilma Roussef e se
agravou com afirmações irresponsáveis e mentiras que os marqueteiros dos dois
lados fizeram seus candidatos dizerem, durante a campanha do ano passado.
Quando esta termina, sua primeira vítima é o próprio vencedor, que não sabe se
sustenta a lorota ou se se empenha no que de fato julga ser necessário fazer.
Ao mesmo tempo que o governo é estigmatizado pelo fracasso da economia
que se liquefaz na sopa fervente e amarga da inflação, do desemprego, da perda
de poder aquisitivo da população, o país toma conhecimento das falcatruas
petroleiras. Mesmo que a presidente não tenha nada a ver com esses escândalos
(e parece mesmo que não tem), ela é simbolicamente responsável por aquilo que
acontece sob sua responsabilidade.
Não adianta dizer que a mídia é golpista e que a oposição é de direita. A
estarrecedora narrativa dos malfeitos na Petrobras revolta o mais ingênuo dos
cidadãos. E não há como negá-los: de onde os “delatores premiados” tiram as
fortunas que começam a devolver ao Ministério Público? Se os réus confirmam a
existência dessas somas extraordinárias, pondo-as à disposição de seus juízes,
como acreditar que isso tudo não passa de manipulação de inimigos
inconformados?
Nesse momento, os vencedores deviam se tornar mais humildes e os
vencidos mais generosos. Cada macaco no seu galho, a fazer o país avançar seu
avanço permanente que nunca terá uma definitiva meta final. Avançar através do
conflito democrático que não pretende eliminar os que pensam diferentemente de
nós, em que cada discurso deve preservar a possibilidade de o outro ter razão.
Sem provas concretas de seus alegados crimes, Dilma não tem nada que
aceitar seu impeachment e muito menos renunciar. Ela tem é a obrigação de
governar, corrigir os erros cometidos e vencer seu inferno astral, evitando a
velha perversão do regime de exceção (formal ou não), provocado sempre pelo
tradicional voluntarismo machista latino-americano.
Em “O ódio à democracia”, Jacques Rancière diz que “deveríamos ver o
sinal de uma constância cívica admirável no número elevado de eleitores que
continuam a se mobilizar para escolher seus representantes (...). E a paixão
democrática que incomoda tanto (...) é simplesmente o desejo de que a política
signifique mais do que uma escolha entre oligarcas substituíveis”.
Conversar é indispensável à natureza humana. Mas, na política, a
pregação de unidade só serve aos oligarcas, instalando a imobilidade no vazio
confortável das ideias que mantêm os “substituíveis” atuantes e poderosos. A
unidade é mais um mito conservador de rosto gentil, ela visa apenas deixar tudo
como está por força de compromissos.
Todo mundo tem o direito de dizer o que quer para o Brasil. Mas não se
pode desmoralizar as eleições universais, livres e diretas que, como dizia
Benjamin Constant, são a fonte sagrada da democracia. O PT, hoje no governo,
cometeu esse erro no passado, com sua estapafúrdia palavra de ordem “Fora FHC”;
não é possível que as vítimas de ontem tentem agora repetir essa traição à
democracia. Não se brinca com as decisões populares.
Cacá Diegues é cineasta
carlosdiegues@uol.com.br
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