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quarta-feira, 14 de agosto de 2024

‘Efeito bet’ faz subir número de jovens da Geração Z em tratamento por vício em jogo


Pessoas com menos de 30 anos já somam mais de um terço dos atendimentos em ambulatório especializado; situação é pior entre homens de 20 anos, que já chegam altamente endividados


Por 34º Curso Estadão de Jornalismo



Jovens com menos de 30 anos já somam mais de um terço (36,3%) dos pacientes atendidos por dependência em apostas no Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo. O aumento do número de pessoas da Geração Z entre os anos de 2015 e 2023 vem chamando a atenção do Programa Ambulatorial do Jogo (Pro-Amjo), vinculado ao Instituto de Psiquiatria do HC. Para especialistas, a falta de fiscalização da publicidade abusiva e a ampliação do setor de apostas no País impulsionam o problema. Entre 2021 e abril deste ano, o número de bets atuando no Brasil passou de 26 para 217, de acordo com a plataforma Datahub.

Quando os dados começaram a ser tabulados pelo Pro-Amjo, em 2015, havia apenas um paciente abaixo de 30 anos. No ano passado, o número saltou para 58, em um total de 160 pessoas atendidas. Até julho de 2024, a proporção entre a Geração Z e os mais velhos vinha se mantendo em relação a 2023. De acordo com o ambulatório, os mais jovens já chegam para atendimento com alto nível de endividamento, após a família descobrir o vício em jogos.

Psicóloga especialista em Transtorno do Jogo no Pro-Amjo, Maria Paula Magalhães acredita que a instantaneidade das apostas e a relação das bets com esportes contribuem no processo de vício. “Hoje, vemos jovens de 20 e poucos anos muito endividados, contraindo dívidas e de uma maneira rápida”, observa Maria Paula.
Ethieny Karen Pereira Ferreira/Estadão

O ambulatório de jogos do HC integra o Programa Ambulatorial dos Transtornos do Impulso (Pro-Amiti), onde trabalha a psiquiatra Nicole Rezende. Ela reitera a visão de Maria Paula e detalha a mudança no perfil dos apostadores. “Antes, era de adultos na faixa de 40 anos e, hoje, é de homens jovens, por volta dos 20”, diz a psiquiatra. “A pessoa aposta, e o resultado vem logo. Isso também é um grande fator de alerta. Quanto mais rápido, maior o risco.”

O acesso às bets esportivas pelo celular é uma das dificuldades do tratamento, uma vez que torna o vício mais acessível. Mesmo assim, a psiquiatra Kátia Branco, também do Pro-Amiti, afirma que é possível montar estratégias para interromper esse ciclo. “Tem aplicativos no próprio celular que impedem a pessoa de abrir certos sites. Outra alternativa é ficar sem o telefone e até mesmo sem os cartões de crédito”, afirma.


Jogar para recuperar as perdas retroalimenta o vício

“Eu não via meu dinheiro como dinheiro, mas como ficha de aposta.” A frase é do estudante de ciências contábeis Fernando (nome fictício), de 26 anos. Ele fez suas primeiras apostas em bets aos 15, com quantias pequenas. Mas o que começou como diversão se tornou um vício. E ele passou a jogar todos os dias.

Depois de perder dois carros, um apartamento e uma casa de praia nos jogos de azar, ele tinha certeza de que conseguiria recuperá-los. “Eu acreditava, assistia bastante esporte e tinha amor ao futebol. Achava que meus palpites sempre seriam vitoriosos”, relata. “Fazia loucuras para poder jogar, meu salário não durava três dias.”

Sem entender que tinha uma doença, o jovem foi alertado por familiares, que sugeriram que ele acompanhasse uma reunião dos Jogadores Anônimos, grupo de apoio para pessoas com dependência. Desde essa época, Fernando frequenta as reuniões, que ocorrem uma vez por semana.


“Eu não via meu dinheiro como dinheiro, mas como ficha de aposta”

Fernando (nome fictício)

Estudante de ciências contábeis

Há quatro meses sem jogar, Fernando contou que deixou de administrar o próprio dinheiro após entrar no grupo de apoio. Em acordo com a família, ficou decidido que ele não teria posse do cartão de crédito nem independência financeira

O movimento de tentar recuperar as perdas, como Fernando fez, é um dos principais indicadores do vício, segundo Robson Gonçalves, economista comportamental e professor da Fundação Getúlio Vargas. “Isso é chamado de viés de custos irrecuperáveis. A pessoa pensa: ‘Não cheguei até aqui para desistir’. E acha que o que deu tantas vezes errado vai começar a dar certo”, alerta.

Os jovens são mais suscetíveis a entrar em um vício porque a formação completa do cérebro ocorre por volta dos 25 anos. “O córtex pré-frontal é o último a ser formado”, explica a psiquiatra Nicole Rezende.

Segundo o professor de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Dartiu Xavier, o impulso é o ponto de partida para que a pessoa jogue. O ato de apostar gera uma sensação positiva, mas isso não dura para sempre. A pessoa atinge um ponto de resistência do prazer, e a ação passa a ser repetida de forma incontrolável.



Jogo não é investimento, alerta especialista

O levantamento Raio X do Investidor Brasileiro, feito pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (Anbima), em parceria com o DataFolha, aponta que a geração Z é a principal apostadora. Em 2023, 29% dos jovens realizaram apostas esportivas.

Segundo Marcelo Pereira, sociólogo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), antigamente, os jogos eram apresentados como uma forma de investimento, com um apelo forte entre as pessoas de baixa renda. Nessa visão, os valores perdidos seriam justificados por um possível retorno financeiro que foge da realidade.


16,7%
Das pessoas de 18 a 25 anos que pegam empréstimo consignado usam dinheiro para apostas na internet, segundo Serasa



“Algumas pessoas que racionalizam a sua prática (de apostar nesses jogos) sempre tendem a levar para essa questão do investimento. ‘Ah, mas são apenas R$ 5 que eu apostei e, no outro dia, ganhei R$ 20; outro dia, apostei R$ 10 e ganhei R$ 30.’ Mas essa pessoa normalmente não contabiliza as vezes em que ela apostou R$ 30 e perdeu R$ 60. Então, o cálculo é sempre um pouco impreciso e impressionista.”

Segundo o Mapa Serasa Crédito de maio de 2024, 16,7% das pessoas de 18 a 25 anos que contraem empréstimo de crédito consignado usam o dinheiro para jogos de apostas na internet. “Para o pobre, o jogo assume uma perspectiva de investimento, de tentar ganhar dinheiro e multiplicar aquilo que se investiu”, diz Pereira. “Já para aqueles de classe média ou alta, a dimensão lúdica é mais importante no sentido de ser uma diversão que cabe no orçamento e é algo de que a pessoa gosta.”


Publicidade pode ser gatilho e precisa ser fiscalizada

Outro ponto visto pelos especialistas como alarmante são influenciadores e propagandas que vendem os jogos de aposta como um investimento, atraindo aqueles que passam por dificuldades financeiras. As bets esportivas foram regulamentadas em 2023 com a aprovação da Lei 14.790. Já os cassinos online, como o “jogo do tigrinho”, foram regulados apenas no fim de julho, pela Portaria nº 1.207. De acordo com a legislação, as plataformas devem pagar em prêmios pelo menos 85% dos ganhos com apostas.

Além disso, elas terão de informar ao apostador sobre normas como o fator de multiplicação (que calcula o valor que o apostador receberá caso seja premiado) e os métodos pelos quais é possível obter prêmios, incluindo a ordem e a quantidade de símbolos necessários. Proibições incluem a promessa de receber lucros futuros, a obrigatoriedade de um jogo específico e que o saldo do apostador permaneça negativo na plataforma. Além do “tigrinho”, serão regulamentados jogos de colisão (crash), de cartas, de roleta, de esportes ou corridas, de dados e de sorteio de bolas e números.


“As plataformas digitais já são viciantes, e os estímulos cerebrais gerados pelos jogos de azar são equiparáveis àqueles produzidos por drogas químicas”

Rodrigo Nejm

Psicólogo e consultor em Educação Digital do Instituto Alana

O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) tem regras sobre as propagandas de apostas: os anúncios não podem promover o jogo de maneira irresponsável, incitar o público ao exagero, prometer ganhos, sugerir enriquecimento fácil ou uma ilusão de controle sobre os resultados das apostas.

Esse tipo de publicidade também não deve ser direcionada para crianças e adolescentes. Isso motivou o Instituto Alana, grupo de impacto socioambiental que trabalha em prol dos direitos das crianças, a denunciar a Meta, empresa dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, ao Ministério Público de São Paulo (MPSP) no fim de junho.

“As plataformas digitais já são viciantes, e os estímulos cerebrais gerados pelos jogos de azar são equiparáveis àqueles produzidos por drogas químicas”, explica o psicólogo e consultor em educação digital do Instituto Alana, Rodrigo Nejm.

O MPSP declarou à reportagem que instaurou uma peça de informação cobrando informações preliminares ao Instagram sobre os fatos. Na época, a Meta informou que restringe menores de 13 anos em suas plataformas e não permite conteúdos de apostas em dinheiro voltados para menores de 18 anos.


Com reportagem de: Anna Scabello, Gabriel Gomes, Guilherme Nannini, Leticia Quadros e Vinícius Novais

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