Escrito por Alessandra Xavier, ceara@svm.com.br
O valor que damos aos que envelhecem diz de como construímos esperança de que haverá também lugar para envelhecermos
Foto: Shutterstock
Alessandra Silva Xavier
Admiramos os clássicos, a arquitetura antiga, os escritos que atravessam o tempo e traduzem a humanidade que nos enlaça universalmente. Ficamos encantados com as árvores centenárias, com o que resiste e traduz a força da vida. Entretanto, quando nos deparamos com o envelhecimento humano somos tomados inúmeras vezes por negação, desconforto e isolamento.
Felizmente, muitas culturas preservam o valor do envelhecer e oferecem um lugar de referência e respeito para o contato com a sabedoria transgeracional e seus aprendizados. A passagem do tempo e os processos de desenvolvimento são atravessados pela cultura, pela história e pela sociedade, e percebemos como as marcas do nosso contexto contemporâneo nos distanciam de uma relação saudável com o envelhecimento.
Lamentamos, sofremos, desejamos voltar o tempo e muitas vezes nos voltamos raivosos com a memória e a história que se estampam na pele e na alma. Desejamos a fonte da eterna juventude como se somente assim tivéssemos alguma garantia de felicidade. Geramos ansiedade, quando o envelhecer pode nos colocar fora do mercado de trabalho, do desejo, da vida. Como se experiência não tivesse valia, tornando-se ultrapassada e obsoleta.
Quando lidamos dessa forma com o envelhecer, excluímos, negamos e desqualificamos a passagem dos anos, o que produz inúmeras consequências conosco e com os outros. O afastamento transgeracional nos priva da troca de experiências e aprendizados, nos distancia da sensação de conforto com a memória, o passado e a nossa história; dificulta compreender a necessidade de uma escuta interna para manter acesa a sexualidade, o trabalho, os vínculos e a sensação de ser especial; nos impede de pensar sobre a finifude e o que devemos construir para uma vida com sentido e gosto pelo viver; nos distancia de ocupar nosso lugar e responsabilidades adultas, pode conduzir para que as coisas passem a ser vividas com peso, raiva e mágoa.
Desqualificando a experiência e a sabedoria dos mais velhos nos tornamos impacientes, e ficamos presos ao instantâneo desesperado do urgente. Ficamos desejando uma vida que não pode ser a nossa, e com isso, a nossa perde gosto e beleza. Porque ficamos ansiosos para voltar a um tempo impossível e o vivido passa a ser percebido como desinteressante.
Ouvir os mais velhos nos ensina sobre paciência, respeito, cuidado, atenção e lições inesgotáveis sobre o amor, o trabalho e o mundo. Como um telescópio do futuro, muitas vezes temos a chance de pensar uma situação atual com olhares em perspectivas temporais diversas. Observamos as mudanças no corpo e temos a chance de nos oferecer cuidados, que muitas vezes nem pensamos precisar devido à onipotência da juventude.
Podemos aprender a respeitar a beleza em sua dimensão múltipla e diversa e não apenas aquela congelada em um padrão estético imutável. Assim, podemos ter um gosto pelas nossas andanças na vida, pelo que nosso corpo guarda do vivido, do sentido, do pensado.
Um corpo que envelhece é um corpo que deu certo. Quando equacionamos o valor de alguém à capacidade produtiva perdemos algo muito valioso, que subtrai nossa subjetividade ao mercado. Desta forma, necessitamos de outros olhares: como essa pessoa amou, ajudou aos seus, cuidou de sua família, desenvolveu atividades comunitárias; quantas conversas, quantas alegrias teve, pelo que chorou, o que viu, o que testemunhou nas mudanças da cidade; quantas árvores plantou, o quanto atuou enquanto cidadão; quantas estrelas viu, em quantos pôr-do-sol se conectou com tudo, em quantos banhos de mar se percebeu imerso, quantos abraços ofereceu, quanto de arte partilhou, quantas mãos segurou...
O valor que damos aos que envelhecem diz de como construímos esperança de que haverá também lugar para envelhecermos, que podemos confiar que teremos uma vida digna e de gratidão pelo que oferecemos em nossa trajetória.
Ouvir as histórias, mesmo que se repitam, sair para passear e desfrutar da companhia, respeitando o ritmo do corpo que pede outro tempo, entendendo que o devagar permite perceber detalhes, que as aprendizagens não estão ultrapassadas, mas são fundamentais para nos aproximarmos de quem somos.
Quando não sabemos do nosso passado, o presente pode ficar desconexo e o futuro instável. Saber e valorizar o que nos antecede enquanto indivíduo e sociedade nos ancora e fortalece a identidade. Se cristalizamos uma imagem que não permite mudar nem envelhecer podemos ficar reféns de um profundo desconforto com quem somos, em uma competição invencível com os outros em busca de não mudar, não perder, não sofrer.
Não teremos mais o corpo infantil, adolescente ou adulto, e por isso, pela memória da passagem do tempo, é preciso aproveitar os dias. A perenidade nos dá a chance de entender o valor de cada experiência e o que realmente importa. Pessoas não são objetos descartáveis do consumo. Ao acolher o envelhecer nos permitimos a alegria de nossa companhia, saboreando as conquistas do que é possível com cada corpo que nos habita; ficamos mais confortáveis na companhia dos novos porque não ficamos nos devendo nada.
Para acolher, o envelhecer precisa do cuidado do hoje. Precisa entender que vida é processo e que alimentação, atividade física, relações, aprendizagens, trabalho, qualidade de lazer, irão interferir no que nos tornamos. Que todo dia partes nossas mudam e nos ensinam a despedir e aguardar o que virá, em um balanço contínuo de perdas e ganhos. Que devemos pensar no que semeamos hoje para receber depois.
Estamos construindo vínculos de amor e cuidado com amigos, filhos, família? Somos arrogantes, indiferentes, brutais e insolentes? Dialogamos com quem precisamos resolver assuntos pendentes? Construímos um mundo interno para habitar quando as mudanças externas precisarem de recolhimento? Sustentamos a permissão para a alegria, a curiosidade e o prazer ao envelhecer?
Talvez seja muito triste quando não pudermos mais desfrutar das coisas como gostaríamos, mas que a gente possa ir com o coração repleto de memórias do vivido intenso e pulsante e a certeza de que desfrutamos absurdamente de cada milésimo de vida e deixaremos o melhor na memória de quem esteve em nosso caminho.
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