Escrito por Adalberto Barreto, ceara@svm.com.br
A verdadeira separação não é separar-se de seu companheiro de carne e osso, mas do que cada um traz do seu modelo familiar anterior
Legenda: As primeiras crises na vida do recém-casado é quando um espera do outro o comportamento da família de origem
Foto: Shutterstock
Adalberto Barreto
A primeira escola é a família. Quando nela chegamos, trazemos, além da herança genética, memórias do que as gerações anteriores viveram, que se manifestam no nosso corpo e em nossas atitudes e comportamentos. Quem não se lembra do ditado popular: "filho de gato, gatinho é... filho de peixe, peixinho é"?
Ao longo da vida com nossos pais, vamos interiorizando a maneira como eles funcionam e interagem. Cada família tem sua trajetória de vida, seus valores e sua cultura relacional, tem uma direção que lhe é própria, conduz a evolução, repetição ou destruição. Cada um, carrega dentro de si, em suas atitudes, em seu comportamento, o desejo de ser reconhecido, valorizado, respeitado por si, por seus antepassados e descendentes.
É preciso escolher sua própria trajetória levando-se em consideração o que herdamos, modificando, acrescentando, transformando. Minha luta para encontrar meu lugar em minha família e na sociedade, também é a luta dos que me antecederam. Quando o encontro, todos os meus antepassados e descendentes também o encontram.
Perceber e reconhecer essa história oculta e esquecida e torná-la visível, nos permite refletir sobre o que herdamos e o que precisamos conservar das heranças positivas e descartar, eliminar nossa herança negativa. Somos pessoas em processo de evolução permanente, procurando administrar, dilapidar o legado recebido de nossos avós.
É uma grande ilusão, reduzir o legado recebido apenas a coisas materiais como terreno, apartamento, casa ou objetos materiais. Quando casamos trazemos modelos, padrões de relacionamentos de nossos pais e tendemos a reproduzi-los com o nosso parceiro/a.
Se venho de uma família de pai autoritário ou ciumento, naturalmente tenho uma tendência a reproduzir com minha companheira/o, atitudes de controle e de posse sobre o outro. Ou ao contrário, evito todo vínculo afetivo, deixando o outro desamparado e inseguro e comprometendo a convivência saudável do casal. Se venho de uma família de mulheres sofridas, submissas, e infelizes no casamento, naturalmente acho que a vida de casado/a é assim, ou ao contrário me recuso casar-se para não repetir esse padrão.
Os dois extremos são comuns na vida do casal: reproduzindo comportamentos ou reagindo a eles. Ou me conformo reproduzindo o modelo herdado, ou faço o que as mulheres de minha geração anterior não ousaram fazer. É muito interessante observar nas gerações anteriores, onde as mulheres não tinham opções de ter poucos filhos e essa geração reage sendo mãe de poucos ou de nenhum. As netas procuram reagir aos avós que não tinham essa opção de ter o controle de suas vidas.
As primeiras crises na vida do recém-casado é quando um, espera do outro o comportamento da família de origem. Ex. marido espera que sua esposa haja como fazia sua mãe devotada ao filho, escolhendo e preparando diariamente a roupa para o filho vestir. Quando o marido reclama da esposa, logo ouve dela a frase: “eu não sou sua mãe, eu sou sua companheira e não sua escrava”. Quando o marido chega mais tarde em casa, ouve de sua esposa: “já estava bebendo com mulheres?”, E ouve do esposo "eu não sou seu pai que fazia isso com sua mãe".
DESVINCULAR
A primeira lição para quem casa é se desvincular desses modelos herdados de minha família anterior. Se não nos separamos deles, vamos viver a vida deles, reproduzindo um velho modelo da família de origem, e não se vive a vida da nova família que está sendo construída.
Muitos casais não conseguem construir o novo modelo de família e em vez de se separar do modelo herdado e construir um novo modelo, eles decidem se separar de seu companheiro/a. O que eu preciso é me desvincular da concepção, do modelo de minha família de origem. Essa sim, é a verdadeira separação. O casal que não faz esse dever de casa, ou está condenado a repetir os padrões de comportamentos herdados, ou reagir a eles.
Nos lembra o adágio popular: “aonde o cachorro vai, leva sua pulga”. É comum ouvirmos de um e de outro que todos os homens ou que todas as mulheres são iguais. Iguais a quem? Iguais aos seus pais? Quando olho para minha esposa, vejo a minha mãe? Quando olho para meu esposo vejo o meu pai?
Cada um esquece que essa “praga de pulga” que vejo no outro é minha própria pulga que me acompanha em meus relacionamentos. Sem essa consciência, todas as tentativas de reconstrução de minha nova família estão fadadas ao fracasso. Do mesmo jeito que para matar a pulga do cachorro, eu não preciso matar o cachorro, para constituir uma família diferente, eu não preciso me afastar, me separar fisicamente do meu companheiro/a e sim, matar a pulga que maltrata, que faz da vida conjugal um inferno insuportável.
Temos assistido a vários feminicídios, onde o marido não aceita ser descartado de um relacionamento tóxico e termina por matar sua companheira, a mãe de seus filhos. A pulga que precisa ser morta, eliminada, é o modelo machista herdado de sua cultura familiar, e não matar fisicamente sua companheira, a mãe de seus filhos, gerando uma dor e um sofrimento ainda maior para seus filhos.
Como terapeuta de casais e de família, constatei essa realidade de perto. Aqueles casais que entenderam que uma vida a dois, exige quase diariamente, separações de comportamentos e atitudes que trazemos de nossas famílias anteriores, esses tem sucesso e conseguem celebrar as virtudes do convívio familiar. Já aqueles que não conseguem, perdem a chance de saber o valor de uma vida em harmonia.
A verdadeira separação não é separar-se de seu companheiro de carne e osso, mas do que cada um traz do seu modelo familiar anterior. Esse é o maior desafio dos que desejam construir uma família genuinamente original e não apenas dar continuidade ao modelo das famílias de origem.
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