

No Ceará, cerca de 9.800 crianças de até 12 anos não possuem registro civil, um documento de extrema importância para garantir os direitos de todo cidadão
00:00 · 11.02.2017 / atualizado às 16:12 · 12.02.2017
Casos de crianças e adultos sem o registro civil de nascimento ainda persistem no Ceará. Estima-se, segundo o juiz auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça do Ceará, Demétrio Saker Neto, que em torno de 9.800 crianças cearenses, com idade até 12 anos, continuam sem acesso a esse documento.
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.Em nome dos pais.Legalmente vitoriosa.Com registros e escola.Anônimo de pai e mãe.Presença importante, mesmo que tardiaNo Brasil, relatório do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em 2015, mostra que apenas 1% das crianças não receberam a certidão de nascimento no primeiro ano de vida, confirmando a erradicação do sub-registro civil de nascimento no País. Apesar desses avanços, duas regiões brasileiras ainda apresentam alta defasagem: Norte, onde 12,5% não foram registrados, e a Nordeste, com 11,9%.
Segundo o juiz, que até janeiro deste ano coordenou, no Ceará, o Programa de Erradicação do Sub-Registro Civil de Nascimento, idealizado pela Corregedoria Nacional de Justiça, este documento é de extrema importância como garantia de cidadania. “A partir dele, é possível promover a proteção contra o tráfico de crianças, coibir a exploração do trabalho infantil, garantir acesso à saúde, entre outros benefícios que o cidadão tem direito”, explica.
O exemplo de Vitória representa bem esta realidade. Desde o nascimento, há 17 anos, viveu sem qualquer documento. Amparada pela lei, conseguiu ingressar na escola pública e concluir o ensino fundamental. Mas foi impedida de fazer a matrícula para o ensino médio. Parou de estudar por três anos e também não teve acesso à saúde pública quando mais precisou. Apesar das perdas, Vitória encontrou forças para lutar por seus direitos e obter o documento que comprova a sua existência (veja box ao lado).
Vulnerabilidade social
Entretanto, o caminho para se obter o registro civil de nascimento pode ser longo e árduo. No caso da Vitória levou quase um ano de buscas e de espera. Quem acompanhou todo o processo foi o educador social da ONG Visão Mundial Manoel Santana, que também integra o Comitê Gestor Municipal de Políticas de Erradicação do Sub-Registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica. Mesmo com os avanços, Manoel aponta alguns entraves, dentre eles a burocracia.
“Os casos geralmente são bastante complexos. Trabalhamos com uma parcela da população de extrema vulnerabilidade social. Para obtermos êxito, peregrinamos por 11 cartórios de Fortaleza, corremos contra o tempo e, muitas vezes, voltamos à estaca zero. Tem casos que levam mais de um ano para serem solucionados”, destaca Manoel.
Serviços interligados
Para os pais dos bebês nascidos em maternidades a partir do ano de 2013, os trâmites do registro ficaram mais acessíveis. Desde então, já foram emitidas, em todo o Ceará, 50.300 certidões de nascimento, geradas nas próprias unidades de saúde onde o parto foi realizado.
Para isso, está sendo utilizado um sistema informatizado que interliga maternidades e cartórios de registro civil. A ação também integra o Programa de Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento, coordenado pela Corregedoria Geral da Justiça do Ceará.
O objetivo desse programa, implantado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é diminuir o número de pessoas sem registro civil e garantir que o documento seja emitido antes de o recém-nascido receber alta hospitalar.
No Ceará, o serviço está disponível em maternidades do Interior do estado e da Capital, a exemplo da Gastroclínica, Unimed, Antônio Prudente, Hospital Geral de Fortaleza (HGF) e Hospital Geral Dr. César Cals de Oliveira.
Com a certidão, é possível obter todos os documentos civis, além de promover o acesso aos benefícios governamentais. Sem o registro civil, o indivíduo não tem direito nem mesmo às primeiras vacinas, o que pode gerar problemas ainda maiores. O registro é gratuito para todas as idades, inclusive para os adultos.
Comitê
Em 2015, Fortaleza somava 6.509 crianças sem o registro civil de nascimento, conforme dados da Visão Mundial. Somente no Conjunto Palmeiras, na periferia da Capital, estima-se em torno de 300 crianças em situação semelhante. Em dois anos de trabalhos, 43 casos de sub-registro civil de nascimento foram solucionados, e cerca de 20 estão com o processo em andamento.
Para atender à demanda de forma mais ágil e organizada, a Prefeitura de Fortaleza instituiu, por meio do decreto 13.931, o Comitê Gestor Municipal de Políticas de Erradicação do Sub-Registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica.
“O comitê foi de fundamental importância, pois conseguimos unir forças e instituições em defesa de uma grande causa que é alcançar todas as pessoas que ainda não têm o Registro Civil de Nascimento”, reforça Yáscara de Medeiros, representante da Secretaria de Educação do Município de Fortaleza no Comitê. Ela ressalta que a iniciativa garantirá um direito básico dos cidadãos que, diante de tantas diferenças e vulnerabilidades sociais, ainda não é a realidade para todos.
Enquanto educador social e membro do Comitê, Manoel Santana diz que continuará lutando para que todos possam ter o acesso ao registro civil de nascimento. Entretanto, deseja que os processos se tornem menos burocráticos e que o poder público consiga resolver estas questões, pois é responsabilidade dele.
“Não podemos permitir mais que uma criança com diagnóstico de hanseníase, por exemplo, continue sem o tratamento adequado porque está aguardando o registro civil”, compara.
Segundo Manoel, a falta de informação também atrapalha o processo. Ele alerta que as escolas não podem impedir a matrícula devido à inexistência do documento, mas a maioria dos pais desconhece essa legislação.
O educador social ressalta que um problema sempre gera outro. Além da falta de registro, a criança não vai estudar. Por outro lado, ele acredita que com a implantação do comitê todos poderão somar forças e dividir suas expertises.
O Comitê conta com a participação de organizações governamentais a exemplo da Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), da Secretaria Municipal de Trabalho e Desenvolvimento Social (Setra), bem como de organizações sociais (Visão Mundial, Reajan, Unicef, Fórum DCA, Renas), lideranças da Igreja de Cristo e Igreja Cristã Internacional, representando o grupo de pastores do Jangurussu.